segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

A misericórdia

Ano jubilar da misericórdia
Ano de Lucas, o evangelista da misericórdia
Ano da Ir. Irene Stefani, Nyaatha e Pwiyamwene


Introdução
O ano litúrgico 2015-2016 assumiu uma cor particular por ser para a Igreja universal o ano jubilar da misericórdia, vivido com o evangelista Lucas, conhecido como evangelista da misericórdia e por fim per ser pelas três famílias consolatinas IMC, MC e LMC o ano vivido lembrando e meditando a vida da Beata Irene Stefani, Nyaatha, a toda misericordiosa no Kenya, Pwiyamwene, a matriarca providente e previdente em Nipepe.
Estamos para iniciar a nossa Assembleia e, como Jesus fazia (Mc 6,30-33), também nós depois de ter percorrido um outro ano nos nossos lugares, tivemos a coragem de deixar todas as nossas actividades, estamos aqui retirados ou melhor regressados num lugar deserto, só nós (o texto marciano repite duas vezes estes dois pormenores) para descansar e ao mesmo tempo contar-nos “tudo o que fizemos e ensinámos”. Todo este ano estivemos na periferia de Ad Gentes, a periferia das periferias, a periferia que hoje Papa Francisco dilui com as outras, mas para nós é sempre periferia prioritária. Chegamos aqui com a nossa maxila cheia das maravilhas que o Dono da messe operou connosco, como o fez com Barnabé e Paulo que regressando a Antioquia da Síria não acabavam de esgotar o relatório da sua primeira aventura missionária.
Neste ano jubilar da misericórdia, no ano do Evangelista da misericórdia, no ano da ir Irene Stefani, neste ritiro que é em todo o sentido um regresso de uma viagem missionária, o nosso dever primário é enumerar e cantar as misericórdias de Deus registadas na periferia de ad Gentes.

Meditação sobre três textos bíblicos:
Santidade, Perfeição e Misericórdia de Deus

Encontrei três textos bíblicos com estrutura literária e finalidade idêntica que nos podem ajudar a entender e contemplar a misericórdia de Deus na nossa periferia ad Gentes: trata-se de 3 adjectivos, de 3 atributos significativos que especificam bem o nosso tema: Deus Santo, Deus Perfeito, Deus Misericordioso.
Lv 11, 45: Sede santos porque eu sou santo. Kadosh.

A santidade é o atributo de Deus mais comum nas religiões, mas também mais enigmático e mais mistérico. A santidade de Deus fascina e ao mesmo tempo afasta, consola e o mesmo tempo amedronta, convida e ao mesmo tempo intimida. O santo é uma categoria a priori com elementos numinosos, tremendos, fascinantes, majestosos. Islam pode ser tomado como a religião da santitade única, exclusiva e tremenda de Deus para qual se deve combater guerra santa, imolando-se e ao mesmo tempo assustando um mundo demasiado hominizado e secularizado. Agora, como atingir este extremo, come varcar e abeirar-se ao limite do numinoso, do tremendo, do fascinante, do transcendental? Sobretudo como entender e percerber a misericórdia de Deus neste horizonte de fascinação, de medo e de terror esmagante?

Mt 5,48: Portanto sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste. Télos

Este texto de Mt introduz-nos no horizonte da teologia nt. Deus Yahvéh torna-se agora Pai, o nome comum e barato de Deus cede lugar ao título específico de Pai: Pai nosso, Pai colectivo, solidário, Pai de tudo e de todos, adorado e amado no horizonte metafórico da família, contudo sempre Pai Celeste, transcendente, santo. Neste contexto doméstico, Deus Pai recebe o atributo de telos no sentido de finito, definido, perfeito, completo e exaustivo em todos as suas potencialidades, que ama em conformidade com as suas leis e preceitos. Exige portanto que os seus filhos sejam também perfeitos, completos, cumpram as normas. È neste momento que o adjectivo télos assume outro sentido. Referido a Deus, telos é sinónimo de plenitude, de ausência de negações e de limites, Deus é infinito, o negativo do finito/limitado, vai além dos limites e das metereologias humanas, enquanto que, se referido à pessoa, télos é sinónimo muitas vezes de limites, de faltas, de desobediência às normas de Deus, de ilegalidade, onde a misericórdia de Deus fica ofuscada, porque substituída pela lei da retalhação, das revendicações egoísticas ou identificada com um estilo de normas rígidas, com o espírito leguleio.

Lc 6,36: Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso. Oiktírmos
Lucas assume a sentência de Jesus modificando-a significativamente. O “portanto” argomentativo de Mt assim como o adjectivo celeste (ouránios) é eliminado, trata-se de Deus Pai, menos celeste mas sobretudo terrestre, doméstico, mais alla-mano, mais conforme ao nosso mundo, a nossa biosofia e biosfera.
Ma a novidade qualitativa do texto modificado por Lc está na substituição do adjectivo telos com o adjectivo oiktírmos. Por outras palavras, a sentência de Jesus, se na versão mt era um imperativo categórico para sermos perfeitos, agora na versão lc é um imperativo categórico para sermos misericordiosos. A versão lc deixa o mundo da legalidade rígida tipicamente farisaica, para entrar no mundo da elasticidade, da dialéctica dos opostos, da flexibilidade do et-et. Lc convida-nos a abandonar a linearidade rígida da matemática (aut-aut) para assumir as curvas arquitectónicas da geometria, a fluididade da alteridade. A categoria da misericórdia não elimina aquela da santidade e da perfeição, mas convida sobretudo a sair da racionalidade fria e férrea para declinar e conjugar a categoria dos paradoxos, das aparentes incoerências e ao mesmo tempo conjugar a categoria da beleza da vida vivida à luz da dinámica da misericórdia, do claro-escuro.

Exemplificação

È neste contexto paradoxal e quase assurdo que vive e prospera a misericórdia quer de Deus no seu Filho Jesus quer aquela da pessoa. Tomamos dois exemplos a nós bem conhecidos.
O Padre Fundador parece-me apresentar a síntese equilibrada dos três textos mencionados: fala muito e até demais da santidade e da perfeição adquirida com o exercício das virtudes, mas ao fim e ao cabo a prerrogativa que prevalece na sua espiritualidade é a misericórdia consolatina, a bondade compreensiva, o silêncio bem oculado, o sorriso paterno e experto que afugenta as dúvidas, os escrúpulos, lançando nos caminhos da ousadia, da confiança extrema, por fim é um coração de projecção global que quer abranger e enxertar todos os povos nas glórias da Consolata.
Outro exemplo é a Beata Irene Stefani que no-lo oferece. São conhecidos os seus gestos heróicos que cumpriu assistindo nos hospitais da primeira guerra mundial em Voi (Mombasa), Kilwa Kivinje, Lindi e Dar-es-Salam (Tanzánia), sobretudo aquele gesto verdadeiramente trágico-heróico de recuperar vivo o Athiambo, libertando-o do montão dos cadáveres à beira do mar para o baptizar.
Ganhou justamente três atributos que repisam a sua misericórdia caritativa: o título de mware Irene = Filha Irene, o título de Nyaatha = a toda misericórdia no Kenya e o título xirima de Pwiyamwene = a matriarca previdente e providente em Nipepe.
Da sua biografia sabe-se que nos últimos dias da sua vida fez oferta da sua existência, vivendo no seu coração por um lado aqueles momentos dramáticos das duas famílias consolatinas e por outro a crise da metodologia da missão que se apresentava em moldes diferentes depois de 3o anos de evangelização. È nesta altura que ir Irene, religiosa 100% allamaniana, missionária 100% perliana, sai do horizonte da misericórdia caritativa humana para entrar no horizonte da misericórdia oblativa e auto-imolativa, típica e única de Deus, bebendo ao cálice da ingratidão, da marginalização, da imolação, amando a caridade mais do que si mesma.
Uma terceira exemplificação vou atingir na biosofia e biosfera xirima, na periferia evangelizada pelas duas famílias consolatinas desde 1926 A.D. Atingindo na religiosidade e ética desta periferia ad Gentes, podemos regressar com a nossa maxila cheia de maravilhas de Deus como a seguinte. Para o Xirima, o santo, o perfeito, o místico é o pixa murima, quer dizer, é o misericordioso, o bondoso, o pacífico que vence a logística humana. Apresento uns textos muito significativos, são metáforas fecundas.

Características do misericordioso xirima

Pixa murima àttemula nvini.
Pixa murima àhòna murima wa enenele.
Pixa murima onnavira vamiwani.
O misericordioso furou o cabo da enxada. (paciente, pacífico)
O misericordioso chegou a ver o coração da formiga.
O misericordioso passa nos espinheiros.

Mulolo wireya murima vamuru,
pixa murima wireya muru vamurima.
O malandro carrega o coração na cabeça,
enquanto que o misericordioso carrega a cabeça no coração.

Pixa murima khanlipa mmatatani, kahiyene namilili.
O misericordioso não é de mão fechada, não é avarento.

Pixa murima nvini onlima olima wene ohivithiwaka.
O misericordioso é como o cabo da enxada:
capina intensamente sem merecer de ser enterrada.


O misericordioso na sociedade xirima

Pixa murima onnètta ni mwene, onatxa ni mwene
àvariwa omwene ùluvanlene, àmuthela pwiyamwene.
O misericordioso sempre anda com o chefe, chega a comer com o chefe,
foi eleito chefe na velhice, casou a matriarca.

Opixa murima wa opwiyamwene ni omwene
ti wisinnyerera , ti namahuwa àtthu awe, ti muhamelo aya.
A misericoridia da matriarca e do chefe (da autoridade)
implica autoimolação, é criadora da sua gente, é o seu encoste.

Teologia xirima da misericordia
Pixa murima a vathivava àmòna Muluku pixa murima a wirimu.
O miseridordioso desta terra viu Deus, o Misericordioso do céu.

Muluku pixa murima wohilikaniwano
àhèra: pixani murima munimòna sa muholo, miri sokhopela.
Deus, o misericordioso sem comparação,
disse: sejais misericordiosos e haveis de ver o futuro, as árvores da outra margem.

Teologia cristã xirima da misericórdia

Muluku, mwanene pixa murima, t’opatxenre wàhuwa atthu,
Mwan’awe, Yesu Kristu, t’opwaherenre àpenuxaka ni àvuluxaka yawo,
Munepa Wottela t’onapwahera wàhuwa ni owìnnuwiha
È Deus, o misericordioso por antonomásia, que começou por criar as pessoas;
o seu Filho, Jesus Cristo, continuou a sê-lo curando-as e salvando-as
e o Espírito Santo continua a criá-las e fazê-las crescer.

Definição do misericordioso xirima
Pixa murima eruku awe ti yowoneyaxa.
A sombra vidal /a irradiação/ a auréola do misericordioso
é muito visível/transparente/contagiosa.

Pixa murima àyara murima.
O misericordioso gerou o coração. (é puérpera)


Conclusão

Por fim, visitando nestes dias uma comunidade ví um rapaz com na camisola estas palavras: I love myself. Depois de ter falado da misericórdia de Deus e dos nossos Beatos, da misericórdia da periferia xirima, não vamos esquecer o dever e o direito de ter também misericórdia/elasticidade para conosco, para a nossa tríade constitutiva: o nosso corpo, a nossa sombra e o nosso espírito como a biosofia xirima afirma (erutthu, eruku ni munepa): ter misericórdia da nossa juventude demasiado primaveril, ter elasticidade da nossa maturidade cheia de virus e ter sorriso irónico e sereno da nossa velhice. Amen aleluia.

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