terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Carisma e Identidade Consolatina no diálogo intercultural

Carisma e Identidade Consolatina
no diálogo intercultural

Introdução

Este tempo é tempo de entrega de missões, de paróquias à Igreja Local. A entrega aos herdeiros legítimos é feita normalmente com satisfação mútua. No entanto, passado um tempinho, acontece de ouvir comentários como os seguintes: “Já não é a mesma coisa, já não é mesmo estilo e ritmo de evangelizar, de visitar as comunidades como éramos acostumados com os missionários e missionárias da Consolata”.

Nestes comentários, indirectamente ou não, anuncia-se e proclama-se a identidade e o carisma IMC: percebido e apreciado não teoricamente, mas na prática, como os Missionários e as Missionárias da Consolata o viveram e o transmitiram. Lembram-se os nomes deles e delas, a coragem e aventuras sofridas e, cosa digna de relevo, nestes momentos de memória retrospectiva nunca me aconteceu de ouvir falar dos limites dos IMC ou das MC. P. ex. quando cheguei no 1975 a Moçambique, ouvi falar do Pe Ferrero ou do Pe Filippi quase só ao negativo, enquanto que os cristãos só ao positivo, até se admiravam que as irmãs MC e os irmãos IMC sepultados em Mitúcue tivessem um sepulcro monumental, enquanto que o “nosso Superior jaz lá no chão esquecido”. O povo cristão olha menos aos defeitos individuais dos missionários e das missionárias da Consolata, percebe mais a aurea consolatina que os/as rodeia e transfigura: em outras palavras, percebe sobretudo a identidade e o carisma consolatino/allamaniano deles e delas.

Identidade

Acerca da Identidade, para a entender bem, parece-me emblemático o provérbio xirima que diz: khapa onnètta ni emp’awe, o cagado vai sempre com a própria casa, é si mesmo sempre, nunca se desliga da sua casa, do seu ser-assim. Se chover ou se rodeado duma queimada, encontra logo abrigo e defesa na sua casa. Em suma, a identidade consolatina deveria ser mais ou menos assim como a capa do cágado.

Carisma e suas atitudes constitutivas

Acerca do Carisma: o seu sentido etimológico é óbvio: deriva da palavra grega karis graça, portanto carisma significa um dom que vem de Deus, um dom vertical descendente e por nenhum motivo prestígio pessoal ascendente. Paulo nas suas cartas não se cansa de mencionar a graça, a sorte que lhe foi dada, que improvisamente a Damasco o apanhou. Os Axirima afirmam o mesmo quando usam o passivo ovariwa: fui apanhado para o reino, para o sacerdócio, em suma para uma tarefa do alto, é como a fundação dos dois Institutos para o Beato Giuseppe Allamano: agarrado pela graça de Deus, pela doença, pela ordem do seu bispo, funda o IMC no 1901, dez anos mais tarde agarrado pela palavra do Papa Pio X, funda o MC.

O carisma monstra dois versantes, implica duas atitudes fundamentais: por um lado passividade receptiva e, por outro, dinamismo expansivo, carismático. Em primeiro lugar implica passividade receptiva, exige pôr-se em posição de escuta e de recepção do dom que de repente investe, inspira e, se bem recebido, transfigura: é o que experimentou cada um de nós ao brotar no seu coração a vocação missionária, mas praticamente é o que acontece ao levantarmos cada dia, fieis no serviço e ardentes no louvor. O carisma é chamamento categórico, é sedução irresistível, diria o prof. Jeremias, nos torna discípulos de Jesus, nos faz religiosos.
Em segundo lugar o carisma implica e exige dinamismo expansivo, carismático: é o momento em que se assume conscientemente o duplo título de Missionário/Missionária da Consolata. Destes dois atributos primeiro a ser mencionado deveria sempre ser a Consolata, como em inglês se costuma dizer. Pois a Consolata é a mitente, é ela que envia enviados, missionários. Não só, mas a Consolata do verbo consolar/confortar indica a tarefa específica do enviado por Ela. Em síntese, é a Consolata que marca o ponto de partida, a pedra miliar da identidade e do carisma consolatino. Sem esquecer o Fundador evidentemente, mas também sem esquecer que ele junto o Camisassa quis desaparece atrás da Consolata, a mitente que nos consola e nos manda consolar com o Kerigma do seu Filho Jesus.

De maneira que o missionário da Consolata, uma vez plenamente consolado, consola-se e consola de mão cheia, põe-se a caminho e anuncia o Kerigma, chegando em toda a parte como portador do vírus da consolação de Deus.


Carisma e seus momentos sincrónicos concomitantes

È oportuno não esquecer dois factores históricos (as raízes) que caracterizam o início, a arké do carisma consolatino. Em primeiro lugar não devemos esquecer que o carisma consolatino tem historicamente como figuras paradigmáticas e arquétipas o B. J. Allamano por um lado e, por outro, o binómio o cónego Camisassa - Mons. F. Perlo: por um lado sobressai a espiritualidade constitutiva allamaniana e por outro o dinamismo expansivo carismático camisassiano/perliano: esta dualidade arquétipa inicial não devia ser esquecida hoje na vivência do carisma consolatino. A ven. Ir Irene Stefani como religiosa foi allamaniana 100%, mas como missionária foi perliana 100% e quantos IMC e MC poderíamos mencionar que olharam a estes modelos iniciais não como um dualismo exclusivo, como um dilema crónico inconciliável, mas como uma dualidade inclusiva e complementar, digna de ser imitada. Vi e ouvi IMC e MC que veneravam o Fundador e choravam também a memória do mons.Perlo.

Outro elemento histórico que não devemos esquecer, porque caracteriza o carisma consolatino desde o seu momento aural, é o facto que nascemos gémeos biovulares: somos missionários e missionárias da Consolata, somos uma dualidade doméstica/familiar com o mesmo denominador, com o mesmo espírito, com a mesma espiral e código genético, numa palavra filhos e filhas da mesma mãe e do mesmo pai, irmãos e irmãs da mesma família e do mesmo lar. Se a casuística desta dualidade revelou momentos cronológicos conflictivos, isto porém nunca pôs em questão o kairós consolatino, o carisma consolatino, na verdade os momentos de turbolência aprontaram momentos de exclarecimento e de crescimento recíproco, até chegarmos aos últimos Capítulos Gerais onde o IMC e MC formulam para o relacionamento das duas famílias consolatinas a palavra-chave Comunhão, palavra-chave que convida a ir além da sinergia operativa e da presença/contiguidade local.


O carisma hoje, hic et nunc

Como ser consolado e consolar hoje, hic et nunc? Como entender hoje o carisma consolatino? Como consolar activo, consolar-se reflexivo e ser consolado passivo neste tempo em que os último Capítulos nos convidam a assumir a inversão de caminho dos dois discípulos de Emaus (regressar a Jerusalém), nos convida a deixar uma margem para passar à outra margem do mesmo lago? Como consolar, consolar-se e ser consolado neste tempo em que a Igreja universal convida ao diálogo todas as religiões (Assisi 2011), planifica Cortili dei Gentili/Pátios dos Gentios em toda a parte, em suma, nos convida a aceitar o desafio da continuidade na descontinuidade, a enfrentar a utopia fecunda da interculturalidade, a ir ao largo e navegar na alteridade teológica e cultural, na dualidade minúscula e maiúscula da história?


Uma parábola significativa

Nestes dias um dos pesquisadores do centro xirima entregou-me a seguinte parábola muito significativa para o nosso assunto: Um homem de nome Bila temia tanto a Deus que queria conhecer mais o Espírito Santo de Deus e fazê-lo conhecer ainda mais. Um dia indo a uma aldeia, parando à margem de um rio, encontrou lá uma carta que lhe dizia: “Bila, sou eu, Deus: se quiseres conhecer o meu Espírito Santo e fazê-lo conhecer mais, chega aqui amanhã, hás de ver a ele e a mim”. O dia seguinte, a tardinha, Bila encaminhou-se para o rio, mas no caminho encontrou um velho aleijado que o mandou parar, pedindo socorro para que o carregasse. Sem demora Bila desculpou-se dizendo que devia ir ao rio ver o Espírito Santo de Deus. Chegando ao rio, Bila lá ficou toda a tarde à espera mas foi em vão. Triste regressou a casa. Perto da porta encontrou outra carta que lhe notificava: “Bila, sou eu, Deus, tinha-te enviado o meu Espírito Santo, mas tu o despercebeste, pois tinhas pressa de chegar ao rio, assim não viste a ele nem a mim”.
Nesta parábola pode-se entrever onde e como hoje nós podemos consolar assim também onde e como podemos serem consolados e consolar-nos. O comportamento à la Bila entre nós missionários não é tão raro e desconhecido como podemos imaginar. Seguros do nosso mundo e mandato teológico, podemos compartilhar a certeza de que sabemos donde saímos e aonde vamos e assim corremos o risco de perder o comboio, de esquecer que o ponto de partida e de chegada de Deus, o “Deus semper maior” pode ser encontrado já no meio do caminho, antes ou além ou aquém dos esquemas e dogmas nossos: é parar e carregar Bila, todo o seu capital teológico.
Para não correr o risco de Bila, o nosso consolar deve ser ou tornar-se bipolar, bidimensional, bifronte, jánico: deve ser um dar e ao mesmo tempo um receber, deve ser um consolar activo que ao mesmo tempo implica um prévio ser consolado passivo, um consolar-se reflexivo. Em outras palavras, como evangelizadores ad Gentes, podemos e devemos semear o Kerigma, mas ao mesmo tempo ou previamente ceifar o pre-kerigma que encontramos já semeado e em estado de maturidade, assumir em cheio como ponto prévio de partida aquele caminho feito pela paciência de Deus e ao mesmo tempo pela ignorância antropológica, mas sempre caminho de Deus e portanto “preparatio evangelica” que acaba por nos evangelizar mais e nos consolar mais plenamente a nós mesmos.


Um exemplo concreto:
a proposta paradigmática do pátio gentílico macua xirima

Tomamos um exemplo concreto tirado da mundo-visão macua xirima, do pátio dos gentios macua xirima, com o qual o IMC e o MC começou a dialogar desde o 1926: toda a religiosidade e teologia macua xirima usa uma nomenclatura e semântica feminina, materna, matriarcal, lunar e nocturna. Se trata o teológico ao feminino, se reza a Deus num horizonte materno, não é devido a moda moderna e a agressividade do género, mas a uma formulação teológica e cultural amadurecida espontânea e linearmente na história deste pátio gentílico. Porque devia ser exclusivamente o paradigma bíblico, masculino, paterno, solar o único e o exaustivo para o teológico e o religioso? Com o tempo não terá esgotado todo o seu potencial inspirador e revelador, tornando-se teologia árida, pensamento filosófico agnóstico, débil, fluido, gregário? A crise religiosa e teológica que alastra a globalidade actual, não exige como pátio gentílico por antonomásia o assumir sério do outro paradigma antropológico complementar para uma recuperação e renovamento teológico, como o pátio gentílico macua xirima o sugere com extrema simplicidade desarmante e como a dualidade consolatina IMC e MC o pregoa?

Esta hipótese, este frontal interrogativo e desafio formulado pelo pátio gentílico macua xirima já o mencionei uma vez e lembro ainda a forte e imediata reacção emotiva e agressiva que provocou. Se hoje regresso a mencionar este assunto, não é por ir contra, mas por ir além. Convidado a fazer uma reflexão/provocação sobre a identidade e carisma IMC, nunca me apercebi tanto como nestes dias do seguinte: é a teologia cristã ao feminino do pátio gentílico xirima que me torna mais evidente e transparente a identidade e o carisma do missionário da Consolata. Na verdade, toda a nossa identidade consolatina, todo o nosso carisma consolatino o pai Fundador o formulou e o apresentou ao feminino, ao materno, à luz de Maria Consolata, é Ela a Fundadora e a mitente/mandante, é ela a sugerir a pedagogia e a metodologia da interculturalidade missionária. S. Lucas afirma por duas vezes que ela incoativamente entendia e não entendia o que lhe acontecia em redor, por isso fazia dançar /fermentar no seu coração toda a Alteridade maiúscola e minúscula que a rodeava até entendê-la e proclamá-la plenamente, resumindo tudo no poderoso e revolucionário Magnificat, onde ela consolada se consola a si mesma e consola todas as gerações que acabaram por proclamar a ela bem-aventurada.


Proposta aplicativa/resposta do pátio gentílico cristão
À luz deste nosso carisma consolatino ao feminino e materno que resposta deram os cristãos do pátio gentílico macua xirima? Que hospedagem ofereceram ao Kerigma cristão apresentado pelos missionários e missionárias da Consolata em horizonte consolatino mariano?
Aos cristãos xirima evangelizados pelos missionários e missionárias da Consolata é-lhes espontâneo rezar a Deus Consolata (Muluku òhakalala, Muluku ònihakalaliha, Muluku ohakalalihiwa wahu). Como avaliar esta profissão de fé, esta oração dos cristãos xirima? Será um fruto híbrido ou autêntico, será promiscuidade, sincretismo heterogéneo ou indício de uma síntese teológica mais madura onde o feminino/materno, o lunar /nocturno tem direito de citadania e de inspiração como o masculino/paterno, o solar/diurno? Não serão os cristãos xirima consolatinos como nós ou até mais do que nós? A fé deste pátio gentílico em Deus Consolata nos irrita ou nos consola? Contudo, em ambas as reacções, embora opostas, percebe-se que Consolata já não é só um título marginal mariano, um santuário geográfica e culturalmene localizado lá na Itália, lá no Piemonte, lá na cidade de Turim: na expressão/oração gentílica Deus Consolata, o atributo Consolata muda dilatando o seu sentido, superando a sua significação regional. Mudando e dilatando o seu sentido, assume mais sentido, um novo sentido e de título mariano local torna-se atributo teológico global que resume num único denominador toda a história da salvação vt e nt, anunciando-a como história de consolação de Deus Uno e Trino que consola activa, passiva e reflexivamente: por um lado, Deus consola o seu povo, por outro o povo é consolado, se consola e vai consolando. Este esboço, esta síntese histórico-salvífica que a evangelização dos missionários e missionárias da Consolata provocou no pátio gentílico dos macua xirima, parece-me digno de consideração. O carisma consolatino sai do nosso coração para assumir carimbos e ritmos novos no coração dos pátios gentílicos por nos evangelizados.
Se o pátio gentílico xirima à luz da evangelização consolatina, produziu esta extraordinária síntese histórico salvífica até introduzir o título de Consolata no coração de Deus, se este pátio deu hospedagem e continua dar maior hospedagem ao carisma consolatino, agora por sua vez nós portadores do carisma cansolatino que hospedagem oferecemos ao pátio gentílico macua xirima, ao seu mundo religioso, a sua teologia ao feminino e materno, ao lunar e nocturno? Continuaremos a oferecer uma hospedagem reticente, condicionante? Continuaremos na nossa atitude dicotónica: mania em dar e alergia em receber, mania em falar e alergia em ouvir, mania em ensinar e alergia em aprender,?

O que é o carisma? Imangens significativas
Apesar de ser único e inconfundível e históricamente circunscrito, o carisma nunca é um espelho onde me contemplo narcisísticamente, nunca é entrar num gueto sem saída e projecção. O carisma autêntico e vivido autenticamente é sempre uma alavanca de Aquímedes que consegue levantar o globo terrestre, é um “raccordo anulare” aberto à todas as direcções, é subir uma “altalena” que incessantemente nos baloiça, lançando-nos do particular ao universal, do regional ao global, do teológico bem conhecido ao teológico ainda não bem conhecido, de Emaus rural a Jerusalém universal, da Consolata de Turim ao IMC e MC do mundo, da Maria Consolata matriarca a Deus Uno e Trino Consolata, matriarca e patriarca de consolação universal.
Amen aleluia!
































Consolata titulo e atributo de Maria,  

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