Carisma e Identidade Consolatina
no diálogo intercultural
Introdução
Este tempo é tempo de entrega de
missões, de paróquias à Igreja Local. A entrega aos herdeiros
legítimos é feita normalmente com satisfação mútua. No entanto,
passado um tempinho, acontece de ouvir comentários como os
seguintes: “Já não é a mesma coisa, já não é mesmo estilo e
ritmo de evangelizar, de visitar as comunidades como éramos
acostumados com os missionários e missionárias da Consolata”.
Nestes comentários, indirectamente ou
não, anuncia-se e proclama-se a identidade e o carisma IMC:
percebido e apreciado não teoricamente, mas na prática, como os
Missionários e as Missionárias da Consolata o viveram e o
transmitiram. Lembram-se os nomes deles e delas, a coragem e
aventuras sofridas e, cosa digna de relevo, nestes momentos de
memória retrospectiva nunca me aconteceu de ouvir falar dos limites
dos IMC ou das MC. P. ex. quando cheguei no 1975 a Moçambique, ouvi
falar do Pe Ferrero ou do Pe Filippi quase só ao negativo, enquanto
que os cristãos só ao positivo, até se admiravam que as irmãs MC
e os irmãos IMC sepultados em Mitúcue tivessem um sepulcro
monumental, enquanto que o “nosso Superior jaz lá no chão
esquecido”. O povo cristão olha menos aos defeitos individuais dos
missionários e das missionárias da Consolata, percebe mais a aurea
consolatina que os/as rodeia e transfigura: em outras palavras,
percebe sobretudo a identidade e o carisma consolatino/allamaniano
deles e delas.
Identidade
Acerca da Identidade,
para a entender bem, parece-me emblemático o provérbio xirima que
diz: khapa onnètta ni emp’awe, o cagado vai sempre com a própria
casa, é si mesmo sempre, nunca se desliga da sua casa, do seu
ser-assim. Se chover ou se rodeado duma queimada, encontra logo
abrigo e defesa na sua casa. Em suma, a identidade consolatina
deveria ser mais ou menos assim como a capa do cágado.
Carisma e suas atitudes
constitutivas
Acerca do Carisma: o seu sentido
etimológico é óbvio: deriva da palavra grega karis graça,
portanto carisma significa um dom que vem de Deus, um dom vertical
descendente e por nenhum motivo prestígio pessoal ascendente. Paulo
nas suas cartas não se cansa de mencionar a graça, a sorte que lhe
foi dada, que improvisamente a Damasco o apanhou. Os Axirima afirmam
o mesmo quando usam o passivo ovariwa: fui apanhado para o reino,
para o sacerdócio, em suma para uma tarefa do alto, é como a
fundação dos dois Institutos para o Beato Giuseppe Allamano:
agarrado pela graça de Deus, pela doença, pela ordem do seu bispo,
funda o IMC no 1901, dez anos mais tarde agarrado pela palavra do
Papa Pio X, funda o MC.
O carisma monstra dois versantes,
implica duas atitudes fundamentais: por um lado passividade receptiva
e, por outro, dinamismo expansivo, carismático. Em primeiro lugar
implica passividade receptiva, exige pôr-se em posição de escuta e
de recepção do dom que de repente investe, inspira e, se bem
recebido, transfigura: é o que experimentou cada um de nós ao
brotar no seu coração a vocação missionária, mas praticamente é
o que acontece ao levantarmos cada dia, fieis no serviço e ardentes
no louvor. O carisma é chamamento categórico, é sedução
irresistível, diria o prof. Jeremias, nos torna discípulos de
Jesus, nos faz religiosos.
Em segundo lugar o carisma implica e
exige dinamismo expansivo, carismático: é o momento em que se
assume conscientemente o duplo título de Missionário/Missionária
da Consolata. Destes dois atributos primeiro a ser mencionado deveria
sempre ser a Consolata, como em inglês se costuma dizer. Pois a
Consolata é a mitente, é ela que envia enviados, missionários. Não
só, mas a Consolata do verbo consolar/confortar indica a tarefa
específica do enviado por Ela. Em síntese, é a Consolata que marca
o ponto de partida, a pedra miliar da identidade e do carisma
consolatino. Sem esquecer o Fundador evidentemente, mas também sem
esquecer que ele junto o Camisassa quis desaparece atrás da
Consolata, a mitente que nos consola e nos manda consolar com o
Kerigma do seu Filho Jesus.
De maneira que o missionário da
Consolata, uma vez plenamente consolado, consola-se e consola de mão
cheia, põe-se a caminho e anuncia o Kerigma, chegando em toda a
parte como portador do vírus da consolação de Deus.
Carisma e seus
momentos sincrónicos concomitantes
È oportuno não esquecer dois
factores históricos (as raízes) que caracterizam o início, a arké
do carisma consolatino. Em primeiro lugar não devemos esquecer que o
carisma consolatino tem historicamente como figuras paradigmáticas e
arquétipas o B. J. Allamano por um lado e, por outro, o binómio o
cónego Camisassa - Mons. F. Perlo: por um lado sobressai a
espiritualidade constitutiva allamaniana e por outro o dinamismo
expansivo carismático camisassiano/perliano: esta dualidade
arquétipa inicial não devia ser esquecida hoje na vivência do
carisma consolatino. A ven. Ir Irene Stefani como religiosa foi
allamaniana 100%, mas como missionária foi perliana 100% e quantos
IMC e MC poderíamos mencionar que olharam a estes modelos iniciais
não como um dualismo exclusivo, como um dilema crónico
inconciliável, mas como uma dualidade inclusiva e complementar,
digna de ser imitada. Vi e ouvi IMC e MC que veneravam o Fundador e
choravam também a memória do mons.Perlo.
Outro elemento histórico que não
devemos esquecer, porque caracteriza o carisma consolatino desde o
seu momento aural, é o facto que nascemos gémeos biovulares: somos
missionários e missionárias da Consolata, somos uma dualidade
doméstica/familiar com o mesmo denominador, com o mesmo espírito,
com a mesma espiral e código genético, numa palavra filhos e filhas
da mesma mãe e do mesmo pai, irmãos e irmãs da mesma família e do
mesmo lar. Se a casuística desta dualidade revelou momentos
cronológicos conflictivos, isto porém nunca pôs em questão o
kairós consolatino, o carisma consolatino, na verdade os momentos de
turbolência aprontaram momentos de exclarecimento e de crescimento
recíproco, até chegarmos aos últimos Capítulos Gerais onde o IMC
e MC formulam para o relacionamento das duas famílias consolatinas a
palavra-chave Comunhão, palavra-chave que convida a ir além
da sinergia operativa e da presença/contiguidade local.
O carisma hoje,
hic et nunc
Como ser consolado e consolar hoje,
hic et nunc? Como entender hoje o carisma consolatino? Como consolar
activo, consolar-se reflexivo e ser consolado passivo neste tempo em
que os último Capítulos nos convidam a assumir a inversão de
caminho dos dois discípulos de Emaus (regressar a Jerusalém), nos
convida a deixar uma margem para passar à outra margem do mesmo
lago? Como consolar, consolar-se e ser consolado neste tempo em que a
Igreja universal convida ao diálogo todas as religiões (Assisi
2011), planifica Cortili dei Gentili/Pátios dos Gentios em toda a
parte, em suma, nos convida a aceitar o desafio da continuidade na
descontinuidade, a enfrentar a utopia fecunda da interculturalidade,
a ir ao largo e navegar na alteridade teológica e cultural, na
dualidade minúscula e maiúscula da história?
Uma parábola significativa
Nestes dias um dos pesquisadores do
centro xirima entregou-me a seguinte parábola muito significativa
para o nosso assunto: Um homem de nome Bila temia tanto a Deus que
queria conhecer mais o Espírito Santo de Deus e fazê-lo conhecer
ainda mais. Um dia indo a uma aldeia, parando à margem de um rio,
encontrou lá uma carta que lhe dizia: “Bila, sou eu, Deus: se
quiseres conhecer o meu Espírito Santo e fazê-lo conhecer mais,
chega aqui amanhã, hás de ver a ele e a mim”. O dia seguinte, a
tardinha, Bila encaminhou-se para o rio, mas no caminho encontrou um
velho aleijado que o mandou parar, pedindo socorro para que o
carregasse. Sem demora Bila desculpou-se dizendo que devia ir ao rio
ver o Espírito Santo de Deus. Chegando ao rio, Bila lá ficou toda a
tarde à espera mas foi em vão. Triste regressou a casa. Perto da
porta encontrou outra carta que lhe notificava: “Bila, sou eu,
Deus, tinha-te enviado o meu Espírito Santo, mas tu o despercebeste,
pois tinhas pressa de chegar ao rio, assim não viste a ele nem a
mim”.
Nesta parábola pode-se entrever onde
e como hoje nós podemos consolar assim também onde e como podemos
serem consolados e consolar-nos. O comportamento à la Bila entre nós
missionários não é tão raro e desconhecido como podemos imaginar.
Seguros do nosso mundo e mandato teológico, podemos compartilhar a
certeza de que sabemos donde saímos e aonde vamos e assim corremos o
risco de perder o comboio, de esquecer que o ponto de partida e de
chegada de Deus, o “Deus semper maior” pode ser encontrado
já no meio do caminho, antes ou além ou aquém dos esquemas e
dogmas nossos: é parar e carregar Bila, todo o seu capital
teológico.
Para não correr o risco de Bila, o
nosso consolar deve ser ou tornar-se bipolar, bidimensional,
bifronte, jánico: deve ser um dar e ao mesmo tempo um receber, deve
ser um consolar activo que ao mesmo tempo implica um prévio ser
consolado passivo, um consolar-se reflexivo. Em outras palavras, como
evangelizadores ad Gentes, podemos e devemos semear o Kerigma, mas ao
mesmo tempo ou previamente ceifar o pre-kerigma que encontramos já
semeado e em estado de maturidade, assumir em cheio como ponto prévio
de partida aquele caminho feito pela paciência de Deus e ao mesmo
tempo pela ignorância antropológica, mas sempre caminho de Deus e
portanto “preparatio evangelica” que acaba por nos evangelizar
mais e nos consolar mais plenamente a nós mesmos.
Um exemplo concreto:
a proposta paradigmática do pátio
gentílico macua xirima
Tomamos um exemplo concreto tirado da
mundo-visão macua xirima, do pátio dos gentios macua xirima, com o
qual o IMC e o MC começou a dialogar desde o 1926: toda a
religiosidade e teologia macua xirima usa uma nomenclatura e
semântica feminina, materna, matriarcal, lunar e nocturna. Se trata
o teológico ao feminino, se reza a Deus num horizonte materno, não
é devido a moda moderna e a agressividade do género, mas a uma
formulação teológica e cultural amadurecida espontânea e
linearmente na história deste pátio gentílico. Porque devia ser
exclusivamente o paradigma bíblico, masculino, paterno, solar o
único e o exaustivo para o teológico e o religioso? Com o tempo não
terá esgotado todo o seu potencial inspirador e revelador,
tornando-se teologia árida, pensamento filosófico agnóstico,
débil, fluido, gregário? A crise religiosa e teológica que alastra
a globalidade actual, não exige como pátio gentílico por
antonomásia o assumir sério do outro paradigma antropológico
complementar para uma recuperação e renovamento teológico, como o
pátio gentílico macua xirima o sugere com extrema simplicidade
desarmante e como a dualidade consolatina IMC e MC o pregoa?
Esta hipótese, este frontal
interrogativo e desafio formulado pelo pátio gentílico macua xirima
já o mencionei uma vez e lembro ainda a forte e imediata reacção
emotiva e agressiva que provocou. Se hoje regresso a mencionar este
assunto, não é por ir contra, mas por ir além. Convidado a fazer
uma reflexão/provocação sobre a identidade e carisma IMC, nunca me
apercebi tanto como nestes dias do seguinte: é a teologia cristã ao
feminino do pátio gentílico xirima que me torna mais evidente e
transparente a identidade e o carisma do missionário da Consolata.
Na verdade, toda a nossa identidade consolatina, todo o nosso carisma
consolatino o pai Fundador o formulou e o apresentou ao feminino, ao
materno, à luz de Maria Consolata, é Ela a Fundadora e a
mitente/mandante, é ela a sugerir a pedagogia e a metodologia da
interculturalidade missionária. S. Lucas afirma por duas vezes que
ela incoativamente entendia e não entendia o que lhe acontecia em
redor, por isso fazia dançar /fermentar no seu coração toda a
Alteridade maiúscola e minúscula que a rodeava até entendê-la e
proclamá-la plenamente, resumindo tudo no poderoso e revolucionário
Magnificat, onde ela consolada se consola a si mesma e consola todas
as gerações que acabaram por proclamar a ela bem-aventurada.
Proposta aplicativa/resposta do
pátio gentílico cristão
À luz deste nosso carisma consolatino
ao feminino e materno que resposta deram os cristãos do pátio
gentílico macua xirima? Que hospedagem ofereceram ao Kerigma cristão
apresentado pelos missionários e missionárias da Consolata em
horizonte consolatino mariano?
Aos cristãos xirima evangelizados
pelos missionários e missionárias da Consolata é-lhes espontâneo
rezar a Deus Consolata (Muluku òhakalala, Muluku ònihakalaliha,
Muluku ohakalalihiwa wahu). Como avaliar esta profissão de fé, esta
oração dos cristãos xirima? Será um fruto híbrido ou autêntico,
será promiscuidade, sincretismo heterogéneo ou indício de uma
síntese teológica mais madura onde o feminino/materno, o lunar
/nocturno tem direito de citadania e de inspiração como o
masculino/paterno, o solar/diurno? Não serão os cristãos xirima
consolatinos como nós ou até mais do que nós? A fé deste pátio
gentílico em Deus Consolata nos irrita ou nos consola? Contudo, em
ambas as reacções, embora opostas, percebe-se que Consolata já não
é só um título marginal mariano, um santuário geográfica e
culturalmene localizado lá na Itália, lá no Piemonte, lá na
cidade de Turim: na expressão/oração gentílica Deus Consolata, o
atributo Consolata muda dilatando o seu sentido, superando a sua
significação regional. Mudando e dilatando o seu sentido, assume
mais sentido, um novo sentido e de título mariano local torna-se
atributo teológico global que resume num único denominador toda a
história da salvação vt e nt, anunciando-a como história de
consolação de Deus Uno e Trino que consola activa, passiva e
reflexivamente: por um lado, Deus consola o seu povo, por outro o
povo é consolado, se consola e vai consolando. Este esboço, esta
síntese histórico-salvífica que a evangelização dos missionários
e missionárias da Consolata provocou no pátio gentílico dos macua
xirima, parece-me digno de consideração. O carisma consolatino sai
do nosso coração para assumir carimbos e ritmos novos no coração
dos pátios gentílicos por nos evangelizados.
Se o pátio gentílico xirima à luz da
evangelização consolatina, produziu esta extraordinária síntese
histórico salvífica até introduzir o título de Consolata no
coração de Deus, se este pátio deu hospedagem e continua dar maior
hospedagem ao carisma consolatino, agora por sua vez nós portadores
do carisma cansolatino que hospedagem oferecemos ao pátio gentílico
macua xirima, ao seu mundo religioso, a sua teologia ao feminino e
materno, ao lunar e nocturno? Continuaremos a oferecer uma hospedagem
reticente, condicionante? Continuaremos na nossa atitude dicotónica:
mania em dar e alergia em receber, mania em falar e alergia em ouvir,
mania em ensinar e alergia em aprender,?
O que é o carisma? Imangens
significativas
Apesar de ser único e inconfundível
e históricamente circunscrito, o carisma nunca é um espelho onde me
contemplo narcisísticamente, nunca é entrar num gueto sem saída e
projecção. O carisma autêntico e vivido autenticamente é sempre
uma alavanca de Aquímedes que consegue levantar o globo terrestre, é
um “raccordo anulare” aberto à todas as direcções, é subir
uma “altalena” que incessantemente nos baloiça, lançando-nos do
particular ao universal, do regional ao global, do teológico bem
conhecido ao teológico ainda não bem conhecido, de Emaus rural a
Jerusalém universal, da Consolata de Turim ao IMC e MC do mundo, da
Maria Consolata matriarca a Deus Uno e Trino Consolata, matriarca e
patriarca de consolação universal.
Amen aleluia!
Consolata titulo e atributo de Maria,
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